Dia 1º após a morte de deus, deserto orientado pelas estrelas, penumbra, noite. Carta aos pós-humanos.




Pelo lado do juízo, conheci céu e inferno e quis me despir desse peso de carregar o mundo nas costas, logo vi-me rodeado de anjos e demônios. Só quem conhece o justo e o injusto é o juízo, a vida nunca entendeu disso, ou antes isso nunca entendeu a vida! Uma porção de piedade pode servir apenas de um efêmero consolo, da crueldade não conhecemos os limites, do mal só conhecemos a fuga. O corpo jogado na lama primordial, onde emergiu CAOS e dele se foi emergido, ou arrebatado, você não acha o começo pois sempre tem de começar! É preciso usar o tato, os olhos, narizes, bocas, pênis, vaginas e ânus, sobre os quais assentaram-se os juízes carrancudos!

Eu não tenho muito dinheiro, não tenho muitos amigos, gosto de algumas pessoas. Um pouco de tédio, uma inquietação. Poderia roubar, mas não queria matar! Pelo lado da vida, eu desejei estar com você, mesmo com pouco dinheiro ou nada para fazer... por que a gente não inventa? Mas também gosto de ficar sozinho, não por tanto tempo, o que é penoso é cair na inércia e de lá não conseguir sair. Quem jugou entender não sentiu, quem não sentiu não viveu! Não estou deprimido, não estou com medo, o que incomoda é deixar o tempo passar é não conseguir sair daqui, tenho um receio sinistro, uma fuga desesperada do mundo e o pior de tudo, um ódio, tão grande, tão inefável que não o posso liberar sem ficar confuso, sem destruir a mim mesmo sendo tomado por forças que pertencem ao próprio mundo.

E o maior salto que pude ter dado foi perceber que sou o mundo, ou que o mundo o sou. As pessoas são elas mesmas, contudo sou-as, dramatizo com meus humores a zona de proximidade entre elas que é a linguagem, sou jogado entre elas pela dívida de viver consumida pelo tempo, tomada pelo juízo, que se apropria da vida como um agiota ou uma grande máfia narcocapitalista de cartões de crédito. Dê uma volta inspirado pelos deuses da natureza que nadam no véu etéreo das folhas mágicas, pela cidade entre ruelas de conjuntos habitacionais e sinta a vibração que emana de cada ambiente, sinta a confusão dos fluxos, se você não estivesse ali com essa inspiração (divina) as pessoas estariam assim tão estranhas? Esse espelho gelatinoso (velocidade da luz) que é a realidade, que são as pessoas, é você! Você alterou o fluxo do tempo e sua mente canalisa outras frequências, chapado eu chapei o mundo e o achei bonito, deixei os outros correrem livres por suas vidas, ou antes por seus imensos mundos estelares e vi a imensidão da minha que abarcava cada instante de finitude, vi-me uma estrela num multiverso singular dentre co-multiversos linguísticos do pensamento que não me pertence como um objeto qualquer do cotidiano.

Minha linguagem espelha esse fluxo de vida pós-humano que senti ao matar a transcendência de valores que foram transfigurados nessa bricolagem estética que fiz da vida. Sinto-me aturdido pela energia que emana das coisa do mundo me contando segredos estranhos, nas entrelinhas do ver. Estou vivo entre os destroços da civilização, a selva de concreto, sendo devorado por intromissões de paranoias entre os humores alheios que injetam passando de corpo em corpo a mordida da serpente babilônica, que modulam os corpos como se fossem de uma argila existencial. Eu concentro profecias nas palavras para rogar uma praça e maldição ao espírito transcendental da banalidade que apodrece os corpos no cotidiano. Ainda não conhecemos os limites da crueldade, do mal só conhecemos a fuga! Se me vejo de fora da sociedade, vejo-a de fora também! Um pensar nômade, por se mover e agir no deserto e sob as superfícies do concreto e não ser agido pelo concreto e somente dele falar como um objeto. Pensar que não conhece mais uma arché, pois se espalha caoticamente em constelações, que são pequenas coordenadas pelas quais pilota-se o corpo pela babilônia cognitiva que foi tirada do centro de comando pelo “singular” de mim, que é o piloto, mago, desertor, órfão, alquimista, ilusionista, psiconauta, onironauta, amante, amigo e assassino das montanhas Eubourz, da fortaleza de Alamut, matando cada um dos juízes caducos em seus gabinetes burocráticos que se apossam da vida!

Sou também o CAOS rastejante absorvendo os piores pesadelos da humanidade, resquícios do medo causado pelo susto de pensar sobre a própria vida e que causou o sono no qual os corpos sonharam delirando com a razão dos juízos e dívidas que formavam laços etéreos entre os que dormiam, acolhidos em egrégoras onde anjos comercializavam suas vidas, fui com os anjos caídos para a terra gozar dos prazeres e sentir o vapor do abismo, jamais houve inferno que não tenha sido na própria terra, pois nós anjos caídos nos apaixonamos pela terra e nela ficamos e nela fundamos o inferno para libertar os humanos, porém feridos pela própria dor da queda ficamos a mercê da escravidão dos humanos de sua humanidade que só conhece pastoril e rebanho. Profundamente marcados, presos, condenados e exilados em alcovas, mas mesmo nas alcovas podemos rasgar o véu do real e desafiar outros anjos inquietos a se lançarem como meteoros na terra para abrir grandes espaços entre os destroços da civilização onde habitarão caostopias experimentais da imaginação livre no porvir, Deus morreu mais deixou seus querubins com espadas flamejantes sobre a árvore da vida e seu cadáver decompôs-se em uma peste, da qual se alimentam as egrégoras da babilônia.

Alguns anjos caídos que ficaram infiltrados entre os corredores secretos da erudição e do hermetismo das cidadelas pós-apocalípticas da babilônia, escreveram vastos mapas caosmológicos, passados por um saber tão falso como poderoso, poetas que liberaram pequenas poções do gênio para cabeças loucas e poderosas receitas de alquimia experimental com o corpo. Criei o CAOS rastejante com um poderoso recurso necromântico, construí uma urna com os corpos derretidos pelo ultimo holocausto nuclear humano e nela aprisionei espíritos ancestrais vingativos de antigos desertores, assassinos e bruxos que sucumbiram à peste derramada pelo sangue do divino em esfacelamento, selei a urna com cada sigilo e pentáculo por mim erigido, ordenando terríveis maldições e quebrei essa urna sobre essa carta que liberará em seus sonhos da razão uma mensagem que a tornará um pesadelo, mas um pesadelo do qual não se pode simplesmente acordar, pois será sempre limitado por abismos e lhe restará apenas a vastidão de um deserto e imensidão dos céus. Só escapando do pesadêlo aberto por CAOS rastejante, pode-se roubar a fruta e comê-la sem ser decepado, nela contem o entusiasmo divino, sem o qual aquelas imagens caóticas navegando pela imensidão poderiam se tornar nuvens, ou aquele fogo iluminador que cega pudesse ser nomeado de sol. Aprisionado no umbral do sonho da razão, que é eu-humano a fruta te imporá o querubim que guardará de ti o segredo da vida como um assecla do antigo deus do qual só restou peste e paranoia.

Por hora é isso que tenho para vos dizer, aguardo os sinais de vossos ritos cruéis e o vislumbre dos rasgos que possam fazer no véu do real com vossas poesias, não importa com qual grafismo escrevam, ou até mesmo sem o grafismo delirando em jornadas xamânicas, oníricas, embriagadas! Aguardo o rasgo do horizonte para que possamos ser arrebatados pela orquestra de estrondos do desabar de anjos em rebeldia.

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