As causas são egoísmos coletivos: para pensar os fascismos de grupo

A loucura é muito rara em indivíduos — nos grupos, nos partidos, nos povos, na época — essa a regra.
Nietzsche




O único e sua propriedade de Max Stirner, é interessante para refletir sobre esses egoísmos das causas coletivas e universalistas, colocar em questão essas posturas políticas que se pretendem benfazejas e desinteressadas, o valor dessa representatividade das maiorias, etc, interessante até mesmo para pensar como o fascismo predomina por meio de grupos identitários. Me faz lembrar também a questão da "servidão voluntária" em La Boétie ou em Espinoza e o "espírito de rebanho" de Nietzsche, de quem Max Stirner (um "hegeliano de esquerda") foi precursor, segue o trecho explosivo que abre sua obra:


- A  minha causa é a causa de nada

Há tanta coisa a querer ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a  causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo! «Que vergonha, a deste egoísmo que só pensa em si!» 

Vejamos então como se comportam com a sua  causa aqueles para cuja causa se espera que nós trabalhemos, nos sacrifiquemos e nos entusiasmemos. Vós, que sabeis dizer tanta coisa profunda sobre Deus e durante milênios haveis «sondado os enigmas da divindade» e lhes perscrutastes o âmago, vós sabereis decerto dizer-nos como é que o próprio Deus trata a «causa de Deus», que nós estamos destinados a servir. E de facto vós não fazeis mistério nenhum do modo como o Senhor se comporta. Qual é então a sua causa? Terá ele, como de nós se espera, feito de uma causa estranha, da causa da verdade e do amor, a sua própria causa? A vós, este mal­-entendido causa-vos indignação, e pretendeis ensinar-nos que a causa de Deus é sem dúvida a causa da verdade e do amor, mas que não se pode dizer que esta causa lhe seja estranha, já que Deus é, ele mesmo, a verdade e o amor; a vós, indigna-vos a suposição de que Deus possa, como nós, pobres vermes, apoiar uma causa estranha como se sua fosse.  «Como poderia Deus assumir a causa da verdade se ele próprio não fosse a verdade?» Ele só se preocupa com a sua causa, mas como é tudo em tudo, também tudo é a sua causa! Nós, porém, não somos tudo em tudo, e a nossa é bem pequena e desprezível: é por isso que temos de «servir uma causa superior». Do exposto fica claro que Deus só se preocupa com o que é seu, só se ocupa de si mesmo, só pensa em si e só se vê a si - e ai de tudo aquilo que não caia nas suas graças! Ele não serve nenhuma instância superior e só a si se satisfaz. A sua causa é uma causa... puramente egoísta. 

E que se passa com a humanidade, cuja causa nos dizem que devemos assumir como nossa? Será a sua causa a de um outro, e serve a humanidade uma causa superior? Não, a humanidade só olha para si própria, a humanidade só quer incentivar o progresso da humanidade, a humanidade tem em si mesma a sua causa. Para que ela se desenvolva, os povos e os indivíduos têm de sofrer por sua causa, e depois de terem realizado aquilo de que a humanidade precisa, ela, por gratidão, atira-os para a estrumeira da história. Não será a causa da humanidade uma causa... puramente egoísta? 

Nem preciso de demonstrar a todos aqueles que nos querem impingir a sua causa que o que os move são apenas eles mesmos, e não nós, o seu bem-estar, e não o nosso. Olhem só para o resto do lote. Será que a verdade, a liberdade, o humanitarismo, a justiça desejam outra coisa que não seja o vosso entusiasmo para os servir? 

Por isso todos se sentem nas suas sete quintas quando zelosamente lhes são prestadas honras. Veja-se o que se passa com o povo, protegido por dedicados patriotas. Os patriotas tombam em sangrentos combates, ou lutando contra a fome e  a miséria. E acham que o povo quer saber disso? O povo «floresce» com o estrume dos seus cadáveres! Os indivíduos morreram «pela grande causa do povo», o povo despede-se deles com umas palavras de agradecimento e... tira daí proveito. É o que se chama um egoísmo rentável. 

Mas vejam só aquele sultão que tão dedicadamente se ocupa dos «seus». Não será isto o altruísmo em estado puro, não se sacrifica ele hora a hora pelos seus? Exactamente, pelos «seus». Tenta tu mostrar-te uma vez, não como seu, mas como teu, e vais parar às masmorras por teres fugido ao seu egoísmo. A causa do sultão não é outra senão ele próprio: ele é para si tudo em tudo, é único, e não tolera ninguém que ouse não ser um dos «seus». 

E todos estes brilhantes exemplos não chegam para vos convencer de que o egoísta leva sempre a melhor? Por mim, extraio daqui uma lição: em vez de continuar a servir com altruísmo aqueles grandes egoístas, sou eu próprio o egoísta. 

Nada é a causa de Deus e da humanidade, nada a não ser eles próprios. Do mesmo modo, Eu sou a minha causa, eu que, como Deus, sou o nada de tudo o resto, eu que sou o meu tudo, eu que sou o único. 

Se Deus e  a humanidade, como vós assegurais, têm em si mesmos substância suficiente para serem, em si, tudo em tudo, então eu sinto que a mim me faltará muito menos, e que não terei de me lamentar pela minha «vacuidade». O nada que eu sou não o é no sentido da vacuidade, mas antes o nada criador, o nada a partir do qual eu próprio, como criador, tudo crio. 

Por isso:  nada de causas que não sejam unica e exclusivamente a minha causa! Vocês dirão que a minha causa deveria, então, ao menos ser a «boa causa». Qual bom, qual mau! Eu próprio sou a minha causa, e eu não sou nem bom nem mau. Nem uma nem outra coisa fazem para mim qualquer sentido. 

O divino é a causa de Deus, o humano a causa «do homem». A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal mas sim... única, tal como eu. 

Para mim, nada está acima de mim! 

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