A Instauração dos Mitos


O inimigo de todos os tempos é a coesão do mito e são muitas as suas máscaras. O chamemos de ideologia, de religião, de pátria, não importa, trata-se da fabulação de ícones que assegurem a permanência mítica do estado e de suas instituições. E porque sua permanência? Porque o corpo coletivo, as massas, em dados momentos irrompem como caos. É como o caos das cosmogonias, é preciso que um agente externo imponha limites a desmesura: eis o ícone, o monumento! 

Então os mitos se encadeiam e mesmo quando o caos irrompe, tenta-se fazer emergir de seu seio esses ícones. Não é difícil, cada visão distinta de um mesmo acontecimento já traz em si coletividades idealistas, como a pátria, sua bandeira, seu hino, uma geração, uma História, etc. Resta aos agentes da ordem condenarem aqueles que “depredam o patrimônio”, ou seja, aqueles que já não reconhecem os mitos, que não os obedece. A estratégia mais simples é tornar grande parte da massa civil em militar, então a massa apoderada pelo mito, policia a si própria e por fim aceita ser estampada no grande discurso da civilização como revolucionária. Como diria Foucault sobre a ordem do discurso: “O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante.” 

O caos é que é o verdadeiro carnaval, o regicídio, mas que infelizmente ao tentar se desvencilhar das correntes que o prendem tende a agir como o escravo revoltado, o romantismo revolucionário é a vingança, a revolta vivifica o corpo, a dissolução na multidão agitada extasia e tudo corre perigo. A juventude nutriu-se desses mitos, do anti-heroísmo do V de Vingança, o mito partidário sucumbe aos poucos e a máscara de Guy Fawkes toma o lugar da de Che Guevara. Guy Fawkes é mais uma idéia que um líder carismático, mas logo sua máscara confunde-se, por exemplo, com a bandeira de uma pátria. Mesmo o caos é um mito, o que importa mesmo é que saibamos disso e não passemos da arte do falso para a divinização! 

Temos de estar atentos a dois processos que se chocam e se confundem. A recuperação da ordem pela instauração dos mitos e as iconoclastias sempre colocadas à margem desses mitos. A medida que a iconoclastia cresce a ordem é obrigada a recuar e suas táticas se tornam as mais baixas: casam-se as formas mais díspares, modulam-se os discursos, mudam-se as intenções. Contudo, os acontecimentos são muito imprevisíveis e não se trata então de traçar um programa político ou uma “reforma”, profetizar o que está por vir e romantizar ou censurar a revolta. Pensar e agir aqui é o mais difícil, pois tudo é puro barulho, tudo vira opinião quando se toma alguma “parte”, quando se escolhe um lado. – De que lado você está? – bradam as consciências escravas insurretas. É preciso pois resistir, mas afinal resistir ao quê? 

Não se deve perder a cabeça. Mesmo a explosão de um prédio ou um afastamento de toda a algazarra devem ser atos políticos pensados. Mas como assim atos pensados? Atos de resistência! De resistência aos mitos, mesmo o pensamento é forçado a pensar isto ou aquilo (o bom senso ou a verdade) sob coesões míticas. Não perder a autonomia crítica pela coesão do grupo! É preciso desmitificar A História, desromantizar as revoluções. Toda coragem que atenta contra a própria vida é apenas um mito, mito do herói estúpido, do “morrer jovem”, mito narcísico, mesmo o pacifismo é um mito, mito de duas caras, ninguém é pacífico, mas se pode ser passivo e mesmo a passividade traz suas violências, contra si e contra outros. É preciso, então, encontrar-se nas revoluções em devir, no tornar-se, é preciso devir outro e não ser encontrado, capturado pelos mitos do espetáculo da recuperação da ordem, não sacrificar a vida pelo mito, não cumprir a vocação religiosa de mártir das massas. 

A cyberatomisação na qual vivemos gera essa multidão de simulacros-fantasma, de duplos virtuais. Trata-se de uma vida solitária, cindida, mas que não implica em um silêncio que acompanha a solidão que se dá quando estamos abertos ao pensar, não é a solidão de estar a escuta de si, dos outros e das coisas, é o asilo das consciências e é sempre importante ter um pouco de afastamento disso, desligar o computador, para que a aproximação seja uma aproximação de escuta. Algumas horas destinadas ao computador nos põe hoje em rede, estar em rede é não estar sozinho, mas em perder a presença física, o movimento corporal, só ter os gestos veiculados por meio de uma tela, nos tornamos simulacros incorpóreos, cada um de nossos perceptos modulados conforme a linguagem da maquinaria virtual, a troca e circulação desses simulacros acelera o diálogo de consciências, ou seja, o diálogo entre representações que cada indivíduo traz de suas formações culturais e pulveriza a autonomia daquele que pilota a máquina na medida em que reduz as mensagens a meros ruídos destinados a se perderem no mar de sinapses alucinadas. A máquina reduz afetos a uma linguagem artificial. 

Os exilados tem encontrado na própria rede linhas de fuga. Os simulacros se multiplicam e criam zonas de convergência, por outro lado, o estado de vigilância é máximo, é perpétuo, não é preciso mais um líder, um partido, para fazer a mediação e a organização das massas. São as próprias ferramentas do controle, frutos do projeto militar de domesticar os perceptos, que cumprem essa função de agenciamento das coletividades. O partido tornou-se uma máquina de atualização do estado um tanto obsoleta, sua matemática de partir e somar, da alta-unidade, não consegue conter mais o caos, seus mitos se tornaram indesejáveis diante de tantas tiranias, da destopização de suas utopias políticas em regimes ditatoriais que só sustentam vermes usurpadores. O controle é o maior de todos os regicídios, torna-nos a cada um seu agente de execução, contudo nos empodera com a circulação maciça de informações, temos uma bomba que explode em nossas próprias mãos. A competição no mercado de informações é completamente desigual e os ícones-mercadorias que cumprem certos padrões de vida é que ganham direito da pastoral das opiniões das grandes massas. 

Eis aí o ambiente perfeito para a fabricação de mitos. Quando falava em pensar, em não perder a cabeça, trata-se de não se deixar ser governado pelos efeitos de uma tempestade de simulacros. Não é uma questão de desprezo por toda e qualquer figura que se destaque da multidão, pois muitos podem nem se pretenderem ser ícones, muito menos desprezo por qualquer idéia que se apresente. Sim, as idéias são perigosas e isso pode significar muita coisa, podem conduzir-nos á criação e a destruição, a ascensão e ao declínio, a saúde e a doença, há sempre nas idéias como que uma abertura delirante e nem tudo suporta o perigo de uma idéia, nem deve suportar, algumas coisas devem mesmo sucumbir. O mito é que alimenta e anestesia a exasperação de um corpo que se vê em crise diante do terrível que nos suscita os fundamentos em afundamento do mundo, ou seja, as Idéias inacabadas, problemáticas, que são constantemente recuperadas pela elaboração de mitos, de ideologias que sustentam os modos de ser legitimados. 

Nesse contexto pode ainda a filosofia enfrentar os mitos? Não se deve entregar de mãos beijadas a problematicidade da idéia pela segurança que sua mitificação oferece. É preciso criar novos problemas: éticos, estéticos, políticos, etc. Não como disciplinas, escolas de pensamento ou “ismos”. Esses problemas devem se perpassarem, são as sendas que abrimos pelo porvir, são as delicadas mudanças em nossos modos de vida que levamos muito tempo, mais até talvez do que tenhamos em vida, para entender. Por meio de problemas bem colocados é que podemos enfrentar a coesão dos mitos e nos apropriarmos da invenção da vida. Resistir aqueles que querem estabelecer novas e velhas pastorais, aos que querem conformar-nos a delírios históricos totalizantes. Devemos multiplicar até mesmo as formas de colocar o ensaio dos problemas, novas artes, então teremos em nossas mãos a potencia que traz o perigo das idéias. Quem só se deixa ser levado pelas ondas não surfa no caos!

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