Sobre falsos profetas e vampiros de almas: um fluxo de consciência e suas polaridades

Por André Vinícius, experimento literário escrito em 26/05/2014



O fluxo de consciência produz o mundo? O que somos no meio desse fluxo?

Toda cerimônia acaba com o tempo convertendo-se em um grande mercado, e ali, jovens outrora obstinados, convertem-se sob bajulação em falsos profetas: - És uma lenda viva! Olha só quem veio... – me dizem alguns jovens, e um velho conhecido da praça com uma curiosa tiara de sacerdote me diz: - Um brinde aos falsos profetas... somos nós os falsos profetas! – e então partilha comigo de um sacramento que trazia guardado dentro de uma edição de bolso do Zaratustra.

Já vivi muito tempo no limbo e é natural que hoje queira ser senhor absoluto de meus próprios movimentos. Mas há aqueles que continuaram a se esgueirar nas sombras, que não desenvolveram personalidade própria e condenaram-se a ser vampiros de almas: querem controlar o corpo do outro para que seja seu cúmplice e seu confidente e quanta miséria despejam! Fazem de tudo o que os cerca aparências feias e amarguradas... e um desses vampiros veio alojar-se ao meu lado e todos que se aproximavam de mim ele tratava com desprezo, zombava, até que se afastassem, e chegou mesmo a me dizer mais de uma vez: - Vamos ali... – um vampiro de alma chega mesmo a acreditar que é amigo de alguém... chega de cúmplices e confidentes!

Percebi então duas polaridades: a autoconfiança e a expansividade psicosocial do sacerdote como pólo positivo e a arrogância, o ego daninho, as mal querências de um vampiro de almas como pólo negativo. Diante do meu silêncio o vampiro de almas me disse:  – Acho que você nem acredita em mim, não é?! – E eu lhe rebati: - Não lhe disse nada! Você está projetando sua má-consciência em mim... – no que ele recuou e olhou para baixo concordando e envergonhando-se. Então pergunto ao vampiro onde está sua companheira, ao que ele responde: - Não se sente a vontade nesses lugares, ela ficou com raiva por que eu vim, me alertou sobre aqui ser um ninho de cobras... ! - Não dá pra desdenhar da opinião de sua companheira, ela talvez fosse a única capaz de lhe salvar de si próprio! O vampiro então acrescentou: - Não confio mais em ninguém, só falo com quem fala comigo, conheço todas as panelinhas... e continuou nessas lamúrias, e começou a tratar mal um jovem deprimido com um fim de namoro (parecia um espectro de mim mesmo num tempo remoto), que conseguiu cativar, e o jovem cercado de garotas era desdenhado pelo vampiro que fingia não ter inveja. Pedi licença, saí e então encontrei o sacerdote.

O sacerdote, por sua vez, não tinha de quem falar mal, não tinha queixas e então lembrávamos de velhos amigos, e de grandes momentos, de experiências e aprendizados, de planos para o futuro... ele não era o tipo que precisava escravizar o corpo de ninguém, era como um fluxo livre de consciência: - Para todos e para ninguém... – dizia ele sobre o Zaratustra, mas bem poderia ser sobre si próprio, que com facilidade transitava criando ocasiões de diálogos com qualquer um e sabendo a hora de sair de cena.

Ambos esses seres me diziam, cada um a sua maneira, haver ali um teatro: De um lado o sacerdote interpretava seu personagem com a curiosa tiara e aura de iluminado, do outro, o vampiro acusava tudo aquilo de ser teatro e se ofendia com o falso, mas ao mesmo tempo alimentava-se da própria negatividade que acusava, reproduzindo-a sem perceber que a maior parcela dessa emissão vinha dele próprio... vai morrer de sua verdade!

Não demorou para que ao me ver com o sacerdote o vampiro saísse das sombras onde se ocultava do teatro e se alojasse ao meu lado, iniciando um confronto com o sacerdote: - E aí princesa como vai?! – Disse-lhe tocando sua tiara, ao que o sacerdote sorriu-lhe agora interpretando uma sacerdotisa, abaixando-se um pouco em um sinal de reverência, como se segurasse saias imaginárias. Vou lhes dizer como porta-se um desses vampiros quando quer guerrear: vira uma “mulherzinha”! Dá soquinhos e tapinhas nos ombros e nas costas, aponta para as vestes do outro, avalia suas tatuagens e adereços, torna-se “estilista”, chama os colegas de “veado” e não só fazem novos inimigos a todo momento, como atraem velhos: teve um que lhe apertou a mão roçando o anel contra o seu dedo, cortando-o, um namoradinho de uma sua ex-namorada e então o vampiro quis me envolver em sua miséria existencial, alertando-me que deveríamos sair dali para evitar uma confusão e eu lhe disse: - Você é muito arengueiro moleque... – zombando de sua infantilidade e tomando distância para respirar um pouco.

A essas alturas algo inquietava-se dentro de mim, o álcool e o sacramento que me fora dado pelo sacerdote destroçara meu foco e eu me tornara um fluxo desordenado de percepções: mil vozes, mil gargalhadas carregadas de sarcasmos, venenos e coisas que me enojavam adivinhar, mil cenas patéticas, mil olhares dúbios, mil fantasias, seres artificiais... abriam-se tantos mundos, mas que pareciam tão óbvios, abria-se uma louca ficção, a ficção da consciência: - Nada é verdadeiro, tudo é permitido! – lembrava a mim mesmo...  nada a dizer para ninguém, lucidez insuportável, sem-saída, dúbia, o sacerdote fazia uma estranha mímica com um outro velho vampiro com quem eu não falava mais, todos olhavam para mim? Mais o nosso mórbido vampiro olhava, disso tinha certeza, com raiva, pois eu não correspondera a seus desígnios.

Eu me tornara uma alma, translúcida a si própria, como se aquelas pessoas, aquela cerimônia não existisse, só existiam minhas próprias perversões, sonhos, desejos, eu queria continuar jogando, atuando, mas tudo se tornara ameaçador, até mesmo o sacerdote! Quando vi era eu mesmo que estava nas sombras onde antes se escondia o vampiro, assistindo as sombras e as paredes se distorcerem sob o charme mórbido das luzes amareladas dos postes... então, veio um jovem se alojar próximo: - Está solitário cara? – disse-me com ar piedoso, ao que lhe respondi: - É estou dando um tempo. – Ele retrucou: - Dando um tempo... – Imitando minhas últimas palavras e calando-se, permanecendo imóvel enquanto meu olhar perscrutava vazios cheios de cores secretas, então ele que esperava eu dizer algo se inquietou e foi para a companhia de um grupelho que estava a poucos metros. A voz desse grupelho me invadiu, falavam de alguém, conspiravam contra alguém, seria eu?! O que eu fazia em meio aquilo?! Fazia eu parte daquela cerimônia?! Teatro de marionetes, aquelas roupas, hoje vendidas como pequenos artigos de luxo, tudo não passava de um mercado e de uma fábrica de sujeitinhos... fora sempre assim? Eu fui um desses sujeitinhos? Mas onde ir? O que eu tinha ido buscar ali? E então não havia para onde olhar, saí como um louco em busca de uma fuga não sei de quê, e não media meus passos, e me sentia desambientado no mundo, e sabia que o melhor para mim estava longe dali, precisava do meu silêncio, dos meus livros, dos meus escritos, dos meus artefatos mágicos, então esbarrei numa trupe de artistas que falavam do espetáculo que haviam encenado, e entre ele haviam uns de voz afeminada que riam, que zombavam e diziam: - Esse cristo nós queremos pregar na cruz! – senti desprezo, seria comigo?! Acelerei o passo, fingi não ser comigo, não sabia se era... becos, ruelas escuras, carros passavam com sons altos, desviei da rua onde se encontravam esses tipos, cheiro de mijo e merda, um casal com perfil de quem me assaltaria, bolam um baseado, me cumprimentam: - E aí roqueiro... – devolvo o cumprimento, passo direto.

Vejo meu reflexo no vidro de um carro qualquer, não conseguia olhar demais em meus olhos aflitos, não conseguia me encontrar e caí na escuridão. Estava derrotado por algum tempo, sofrendo de uma estranha insônia. Fechei meus olhos e logo meus “sonhos” se tornaram uma sucessão interminável de cenas sem solução, exacerbações da própria realidade desperta, não conseguia nem dormir, nem permanecer acordado.

Por que eu só uso roupas pretas? Não pense que sou alguém triste só porque sou escuro e cinzento! A escuridão da noite não é incompatível com as múltiplas tonalidades do ser, pelo contrário, posso senti-las puras com as luzes apagadas, nossos olhos hackeados, máquinas de ver viciadas, nos roubam essa pureza... o sentido a ser dominado é o afeto, perscrutar o silêncio e a escuridão passou a ser o exercício que melhor define minha estadia no mundo.

Então pensei ter me tornado uma entidade, enquanto caminhava por aquelas vielas escuras e estreitas que se alongavam em minha percepção como túneis elásticos, as pichações pareciam hieróglifos de uma verdade profunda sobre o universo, escutava os uivos e urros de bêbados e prostitutas perdidos na lassidão de suas buscas desgovernadas pela inebriação. Eu tinha me tornado uma espécie de “preto velho” ou algo assim, como se minha solidão e lucidez em meio aos excessos de uma consciência alterada fosse um prenúncio de um destino sobrenatural, de uma existência fadada a vagar por esses lugares subterrâneos recolhendo oferendas em encruzilhadas e conduzindo essas almas sem corpos à um passeio pelo esquecimento de si mesmos e um retorno a esse inferno de si duplicado pela ressaca .


- Taxi, taxi...- digo com a voz sufocada e combino um preço qualquer. Voamos, o velocímetro sobe, bixas pedem parada enquanto o taxi atravessa o litoral sombrio da madrugada, o taxista me pergunta com indisfarçado sarcasmo: - Tomou umas ficou muito doido e agora vai para casa? – fico pensativo em meio a velocidade insana, o taxista ultrapassa o limite da placa de transito e diz grunhindo: - Vou ser multado... – me sinto sem corpo, túnel elástico de novo, eu sou o túnel, me sinto a própria velocidade, vertigem agradável, me sinto no comando do universo, posso pensar qualquer coisa, tudo me desperta um agradável interesse, mesmo a figura rude e sisuda do taxista, me sinto como se estivesse voltando para meu corpo que deixei abandonado em casa e respondo: - É cara, venho à muitos anos à essas cerimônias, estou cansado, não consigo ir até o final, me dá vontade de estar em casa! – e com essas palavras meu corpo vem até minha alma, peço para o taxista parar em algum lugar um pouco distante de casa, pago-o com as notas amassadas que tiro do bolso - Fica com o troco... - agradeço-lhe, travestis aglomerados na esquina em busca de algum trocado me olham curiosas... “prefiro essas figuras exuberantes que se manifestam no calar da noite”, penso... vago pela rua contemplando o silêncio, uma paz mística se apodera de mim, me sinto acolhido e protegido por uma sensação familiar, reconheço o lugar, me sinto parte daquilo, maior que meu próprio corpo, ou como se meu corpo fosse aquele lugar, desço a rua escura e erma, mas ao chegar em casa dói-me a cabeça, náusea profunda, gosto amargo das palavras de um vampiro, fecho os olhos e as cenas voltam, um inferno interpõe-se entre mim e meu corpo e não consigo alojar-me nele, quando saímos por aí deixamos nosso corpo se tornar um fluxo de consciência, corpo-sem-orgãos, agora meus órgãos não respondem, profunda náusea, vomito por toda manhã com gosto de veneno na boca, como quem quer esvaziar-se, simplesmente eu, só eu, eu, só... e basta!

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